quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Coincidências

Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Seminário de Escrita Criativa e Interactiva. O objectivo era construir uma história com base em dois enredos, dois locais e duas personagens criadas pelos alunos nas aulas.

Personagens escolhidas: Alice Oliveira; Manuel Fonseca
Locais escolhidos: átrio do hotel; esplanada à beira-mar
Enredos escolhidos: mulher com carreira sobrevive a um desastre de avião; reencontro pai/filho



Alice Oliveira era uma mulher independente de 35 anos. Tinha um porte alto e longos cabelos pretos, e a sua sensualidade não passava despercebida aos olhos daqueles que consigo conviviam. Tinha-se tornado empenhada e independente desde cedo, com a fuga do seu pai de casa, viu-se obrigada a crescer precocemente. Com apenas 12 anos fazia todo o tipo de biscates que sabia para poder ajudar a sua mãe com as contas. O emprego de mulher-a-dias da Dona Albertina não chegava para manter a casa e todas as despesas.

Apesar das dificuldades Alice nunca desistiu dos estudos, possuidora de uma inteligência acima da média, sempre conciliou os estudos com os trabalhos que fazia e com 18 anos ingressou no curso de Germânicas. Nessa altura trabalhava como dactilógrafa num escritório de advogados e tinha ainda tempo para fazer alguns cursos paralelos ao da universidade na expectativa de um dia mais tarde se conseguir tornar numa mulher de sucesso.

Nunca deu muita importância a relações amorosas, também porque tinha consciência do pouco tempo livre de que dispunha. No entanto, foi no escritório de advogados que conheceu Aníbal por quem se apaixonou e com quem chegou a casar num momento de maior loucura. Contudo, não foi um casamento perfeito. Em pouco tempo Aníbal revelou ser um homem violento e alcoólico, situação que conduziu ao seu despedimento do escritório. Alice não ganhava para suportar as despesas de ambos e, acima de tudo, não tinha mentalidade para aturar aquela situação que a fazia em tudo relembrar o passado e o sofrimento que o seu pai fez a sua mãe passar. A morte precoce de Aníbal, com uma cirrose galopante, apesar de marcante foi, contudo, um alívio para a vida de Alice que decidiu seguir em frente e esquecer de vez qualquer tipo de relação amorosa. Dona Albertina, sua mãe apoiou-a nessa decisão e recebeu-a em sua casa pronta para a ajudar a seguir com a sua carreira.

Em poucos anos Alice acabou o seu curso universitário e possuía já um currículo invejável de cursos e experiência profissional. Não foi difícil encontrar um bom emprego numa das melhores multinacionais da cidade que lhe permitiu comprar um apartamento para si e proporcionar à sua mãe uma vida confortável nos anos merecidos de reforma na sua casa na Estrela.

O seu cargo na empresa obrigava-a a viajar inúmeras vezes mas Alice não se importava, muito pelo contrário, aproveitava para conhecer novos locais, novos métodos de trabalho e trocar experiências com outros empresários.

Esta seria mais uma dessas muitas viagens. Hospedou-se no hotel do costume onde gostava sempre de passar a noite anterior à viagem para poder relaxar e não se preocupar com os deveres da casa. Passava a limpo todos os relatórios que teria de apresentar pois não se permitia a si mesma qualquer falha. Aquele era um hotel de 5 estrelas, muito requintado e cheio de pormenores, tal como Alice se tinha habituado.

Ao acordar, manhã cedo, e depois de tomar um belo pequeno-almoço no quarto resolveu descer ao átrio e permitir-se a si mesma uns poucos minutos de descanso a observar o ambiente na zona de convívio do hotel, luxuosa e requintada como Alice apreciava. A enorme clarabóia que iluminava o átrio deixava passar a claridade do sol revelando um dia lindo de Verão e iluminava as plantas de uma forma graciosa despertando em Alice um leve sorriso na face. O chilrear das aves exóticas que se encontravam no lado esquerdo da entrada animava o ambiente já de si agitado com o entra e sai frequente de hóspedes e empregados.

Quando olhou para o relógio Alice quase deixou fugir um grito, tal era o seu atraso. O avião partia às 10h00 e eram 9h30 e ela ainda ali estava. Não se perdoaria se perdesse este voo pois isso iria significar um atraso significativo na reunião que tinha marcada com os investidores estrangeiros. Chamou o bagageiro do hotel e rapidamente entrou num táxi pedindo ao motorista que a levasse ao aeroporto o mais rapidamente possível. Quando chegou ao aeroporto nem queria acreditar no que via. O seu voo estava atrasado devido a problemas técnicos com o avião. Alice em poucos segundos puxou do seu telemóvel, fez alguns contactos e conseguiu que o avião partisse naquele instante mesmo que não estivesse nas melhores condições.

Já no avião decidiu reler mais uma vez todos os relatórios, para ter certezas que não havia nenhuma falha. A sua concentração era tal que nem se apercebeu dos problemas que atravessavam. Havia uma enorme tempestade no oceano e o avião estava em dificuldades, temia-se o pior e o desespero era visível na tripulação e nos ocupantes do voo. Alice tinha a cabeça tão cheia de ideias que não tinha sequer espaço para pensar no acidente, na sua morte ou no que quer que fosse.

No entanto, não houve como evitar e o avião despenhou-se em alto mar. Alice conseguiu sobreviver quase que miraculosamente, mantendo sempre a sua frieza, alcançou um colete salva-vidas e nadou até uma ilha que naquela altura lhe pareceu um verdadeiro oásis ali perdido no meio do oceano. Nem queria acreditar naquilo que via. Sem olhar para trás, agarrou a sua pasta e nadou até à praia.

Quando estava a chegar à areia vislumbrou um homem a acenar com os braços agitadamente e mais esperanças teve de que não fosse uma ilha deserta mas sim uma civilização de onde pudesse seguir o seu rumo.

Qual não foi o seu desânimo quando chegou à margem e o homem, Manuel Fonseca, lhe disse que era também ele um sobrevivente de um acidente semelhante que tinha ocorrido 37 dias antes. Alice desesperou, gritou, esbracejou, como podia ela perder a reunião que tinha marcada, como podia ela por em causa um negócio tão importante, jamais a iriam perdoar na empresa quando soubessem.

Manuel ficou surpreendido ao ver aquela mulher à sua frente, sobrevivente de um desastre de avião, preocupada com o trabalho, esquecendo a sua própria vida que, ali naquela ilha, se tornaria como a dele, bastante complicada.

Depois de se acalmar e de perceber que não havia muito a fazer Alice pediu desculpa a Manuel pela sua atitude intempestiva e apresentou-se. Ainda nem tinha reparado bem na figura de Manuel, era um jovem alto e entroncado, mas já com uma barriguinha saliente. Tinha uns doces caracóis ruivos e uma pele pálida, avermelhada pelo sol.

Foram 30 longos dias que permaneceram juntos naquela ilha deserta, combatendo todas as adversidades que se lhes apresentavam e comendo cocos e raízes que encontravam. Durante esse tempo falaram por muitas horas, era das poucas coisas que podiam fazer e que os mantinha distraídos da sua realidade, pois jamais sabiam se conseguiriam sair dali algum dia.

Alice contou a Manuel a sua vida difícil, o seu relacionamento complicado com Aníbal, e a sua completa dedicação ao trabalho como forma de se afirmar na vida e procurar fugir a qualquer tipo de sofrimento futuro.

Manuel falou-lhe de si. Era um rapaz de 31 anos que tinha saído de casa dos pais bem cedo, devido a uma grande discussão. Tinha ido viver com a sua avó Matilde para a zona da Estrela e nunca mais tinha voltado a Pampilhosa da Serra onde viviam os seus pais. Era carteiro de profissão e gostava daquilo que fazia pois já tinha feito amizades entre as pessoas do bairro e era sempre bem recebido. Com a morte da sua avó aprendeu a dar ainda mais valor à sua profissão e entregou-se a ela de coração pois nunca tinha sido bem sucedido nos seus relacionamentos.

Foi então que Alice lhe falou da sua mãe, a Dona Albertina, que também vivia na Estrela há muitos anos. Manuel conhecia-a bem, era a senhora reformada do 2º andar do número 13 que lhe costumava pedir para ler as cartas que recebia e lhe falava muito da filha que só vivia para o trabalho. Nunca poderia imaginar que iria encontrar ali Alice, naquela situação. Como o mundo é pequeno pensaram ambos.

Ao longo dos dias Alice foi-se apercebendo de como Manuel era metódico e organizado. Mesmo em situações adversas como aquelas em que viviam, mantinha sempre tudo muito arrumado, as folhas de palmeira onde dormiam muito direitas, os cocos que tinham para comer todos arrumados a um canto. Alice gostava desse jeito organizado de Manuel mas tinha prometido a si mesma jamais se envolver com alguém desde que tinha morrido Aníbal por isso fugia ao máximo ao contacto mais próximo que pudessem ter.

Manuel ia-lhe falando dos seus gostos, dos sítios que gostava de frequentar e foi assim que descobriram mais um gosto em comum. Ambos frequentavam o Café Central com a sua grande esplanada à beira-mar. O ambiente agradável, os dias de animação e ginástica, as noites de música e karaoke, a separação entre fumadores e não fumadores, a vista para o mar. O Café Central era tido por ambos como o melhor café da zona ribeirinha de Lisboa, já se deviam ter encontrado por lá mas nunca tinham reparado. Alice adorava o batido de morango e a tosta de frango, Manuel deliciava-se com o cocktail de frutas e a salada de frango.

Decidiram parar por ali a conversa porque já estava a crescer em ambos água na boca só de pensarem naquelas delícias. E eles não tinham ideia se algum dia poderiam voltar a usufruir da tranquilidade do Café Central, mas combinaram desde logo que se voltassem, iriam festejar juntos com um belo lanche naquela esplanada.

Entretanto, bem longe dali, em Pampilhosa da Serra, o pai de Manuel, o Senhor Fernando estava gravemente doente e todos os dias dizia à sua mulher, a Dona Maria, que o seu último desejo era rever Manuel e pedir-lhe perdão por todos estes anos de ausência. A Dona Maria sofria com a dor do seu marido mas não sabia o que fazer pois não tinha qualquer notícia do paradeiro do seu filho nem tinha meios para procurá-lo. Foi então que comentou com as vizinhas o que se passava, e todos resolveram juntar-se e ajudá-la a procurar Manuel.

Seguiram o rasto dos familiares que ele podia ter procurado quando saiu de casa e o único fruto que obtiveram foi a avó Matilde que descobriram ter falecido há 6 anos. Seguindo esse rasto a Dona Maria decidiu ir até Lisboa com a sua amiga e foi ao bairro da Estrela procurar informações. Ali, toda a gente conhecia Manuel, o carteiro do bairro que tinha desaparecido há cerca de dois meses. Informou-os de que iria viajar para aproveitar as férias de Verão mas nunca mais tinha regressado. Dona Albertina ia a passar e ouviu a conversa, também conhecia Manuel e também a sua filha tido ido de viagem sem nunca mais ter dado noticias. Foi então que Dona Maria e Dona Albertina se organizaram para procurar os filhos e foram até ao aeroporto obter informações.

Foram informadas dos acidentes que tinha havido com aviões que passavam naquela zona do oceano mas disseram-lhes também que estavam a ser feitas buscas na tentativa de encontrar sobreviventes. Ambas sofreram com esta notícia e desesperaram pela morte dos seus filhos guardando sempre uma réstia de esperança no seu regresso.

E esse regresso aconteceu cerca de um mês depois. Um avião que sobrevoava aquela zona avistou a ilha deserta. Alice e Manuel levantaram-se, esbracejaram, acenderam fogueiras, e conseguiram ser resgatados. Puderam regressar a Lisboa, reencontrar as suas mães, e Manuel pode perdoar ao pai no seu leito de morte.

Alice e Manuel encetaram então um relacionamento. Alice aprendeu a dar menos importância ao trabalho ou, como ela gostava de afirmar, a equilibrar a sua balança entre o trabalho e a vida pessoal. Manuel regressou às suas cartas e ao seu bairro, tratava da casa a seu gosto pois Alice gostava do seu jeito metódico e organizado e não se importava nem um pouco com a sua mania de escovar os dentes diariamente no mínimo umas dez vezes.

Quase todos os fins de tarde eram passados em conjunto no Café Central, sentados na mesa à esquerda do palco na esplanada virada ao mar. Era o local de eleição do casal. Reviver os tempos na ilha, partilhar experiências vividas ao longo do dia e fazer planos para um futuro em conjunto eram alguns dos temas de conversa de Alice e Manuel.

1 comentário:

MAD disse...

Amiga! Nem acreditas, escolheste as personagens que eu ía escolher! Definitivamente temos muitas semelhanças no que toca a escrita criativa! Beijos aqui da maluquinha!!!