domingo, dezembro 19, 2004

Construção de uma narrativa

Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Seminário de Escrita Criativa e Interactiva. O objectivo era construir uma narrativa a partir de algumas frases soltas retiradas de um texto de Gabriel Garcia Marquez.

- Vou contar-te a verdade. Simplesmente a verdade.
Foi assim que o Bruno se dirigiu a mim da última vez que falámos. Ele tinha-me ligado uns minutos antes, muito angustiado, e disse que precisava de falar comigo com urgência. Falei com o Renato e disse-lhe que tinha de sair mais cedo da empresa porque tinha assuntos pessoais para resolver, ele, como sempre, foi muito atencioso e deixou-me sair. Peguei no carro e fui a correr ter com o Bruno ao sítio de sempre, aquela rocha na Praia da Vila onde nos sentamos e podemos ver o mar, ouvir as ondas a bater nas rochas, sentir o cheiro da maresia.
Tínhamos 15 anos quando descobrimos aquele lugar, escrevemos o nosso nome na rocha e desde então aquele passou a ser o nosso esconderijo, ali partilhamos tudo, bons momentos, grandes problemas, até o nosso primeiro beijo. Ainda hoje com 27 anos continuamos a encontrar-nos ali.
Quando me telefonou senti na voz dele que precisava mesmo de mim, algo se devia ter passado para ele estar assim. Somos amigos desde infância, conhecemo-nos muito bem, já fomos íntimos e agora mantemos uma relação de amizade profunda. Quando precisamos de um conselho, uma palavra amiga, um sorriso, corremos logo um para o outro, é como se fosse uma necessidade básica, como se só conseguíssemos sentir e resolver as coisas quando as partilhamos um com o outro.
Quando lá cheguei ele já lá estava sentado, estava despenteado e com umas calças pretas rasgadas e uma camisola cinzenta larga, não era nada habitual vê-lo assim, ele costuma gostar de se arranjar, de por gel no cabelo, vestir a roupa da moda. Apressei-me a ir ter com ele, o assunto devia ser mesmo sério.
Aproximei-me, pus a mão sobre o ombro dele e disse:
- Bruno… Em que estás a pensar?
- Nada – respondeu-me ele, com um certo desencanto – Sonhava.
- O que se passa contigo? O que aconteceu? – Insisti.
Ele virou-se para mim, os seus olhos castanhos penetraram nos meus, com as mãos agarrou-me pelos braços e abraçou-me com força, senti o calor dos nossos corpos aumentar. Foi então que ele me disse:
- Vou contar-te a verdade.
Simplesmente a verdade.
As palavras que ouvi depois ainda agora me acompanham com a mesma intensidade. Como foi possível eu não ter reparado? Como podia ele estar tão mal e eu não ter visto, não o ter ajudado? Naquele instante senti-me completamente inútil, impotente. Saber que o meu grande amigo estava assim, viciado, há 2 anos que era toxicodependente e estava envolvido com o mercado negro da droga, e eu, cega, nunca tinha dado conta do estado dele. É verdade que não estamos todos os dias juntos mas falamos imensas vezes por dia, eu devia ter reparado.
Acompanhei tudo o que ele me contou com imensa atenção, ele estava decidido a tratar-se e isso era o mais importante. Eu dei-lhe todo o apoio, até lhe disse que ia com ele à clínica mas ele preferia seguir esse caminho sozinho para sentir que era realmente capaz.
Depois dessa conversa resolvemos passar o resto do dia juntos, aproveitar aqueles últimos momentos antes dele ir para a clínica. Andámos um pouco pela praia e depois fomos até minha casa. Fiz salsichas com batatas cozidas, uma combinação algo estranha mas o Bruno sempre gostou, diz que o fazia lembrar da mãe. Eu nunca gostei muito desse tipo de comida, sempre fui muito preocupada em manter a linha por isso tornei-me vegetariana há 5 anos, por influência da minha amiga Rita que já o era.
Desde novo que o Bruno perdeu os pais num acidente de viação, sem irmãos, ele tinha nos amigos o único ponto de abrigo e eu era a grande companhia dele mas desta vez não o tinha ajudado, não tinha estado ao seu lado. Mas agora estava decidida a acompanhá-lo, a ajudá-lo a ultrapassar este problema, a trazê-lo de novo à vida real. Conversámos bastante, há um tempo que tinha largado o emprego de segurança e isso deixou-o com mais tempo livre para se envolver com gente perigosa que o levara por maus caminhos.
Quando anoiteceu chegou a hora de ele ir embora, a entrada na clínica era feita a partir das 21h e ele já tinha tudo pronto para ir. Mais uma vez lhe demonstrei todo o meu apoio e dei-lhe força para seguir em frente. Aquele era o caminho certo e não podia deixar que o meu amigo se perdesse novamente.
Levantámo-nos do sofá e fomos até à porta, olhamo-nos olhos nos olhos e senti um arrepio em todo o corpo, estava nervosa de o ver partir, ansiosa que ele voltasse logo, curado. Ele passou as mãos pelos meus cabelos pretos, sempre gostou de brincar com os meus caracóis, e eu pus as mãos na cara dele, senti a barba por fazer, os lábios grossos, o cabelo forte. Abraçámo-nos por longos momentos, sem falar, era uma forma de eu lhe dar força e dele se sentir protegido por mim. Ele deu-me um beijo demorado na face e eu, num impulso, beijei-o na boca. Senti que o nosso amor de adolescentes estava a renascer. Ele sorriu, abriu a porta e saiu.
Eu regressei ao sofá à espera de um milagre que fizesse voltar tudo à ordem devida.

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