domingo, dezembro 19, 2004

Continuação da Narrativa

Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Seminário de Escrita Criativa e Interactiva. O objectivo era continuar a narrativa feita anteriormente.

Já passou uma semana desde que o Bruno foi para a clínica, temos falado ao telefone todos os dias, ele diz que está a ser muito difícil adaptar-se aos tratamentos e tem sofrido imenso com as ressacas. Mas diz que a clínica é muito boa e as enfermeiras são sempre muito prestáveis a ajudá-lo.
Hoje de manhã quando me ligou falei-lhe da minha vontade de o ir visitar, tenho vontade de o ver e de estar com ele, de lhe dar força para continuar a suportar aqueles tratamentos para que possa ficar curado logo. Acho que se ele sentir algum apoio do exterior pode ganhar um novo ânimo para continuar. Ele de início mostrou-se renitente em aceitar a minha proposta, disse que estava com muito mau aspecto, que eu não ia gostar de o ver, mas sempre lhe consegui dar a volta ao longo de todos estes anos e, mais uma vez, o convenci que era bom eu ir vê-lo.
Tive uma conversa com o Renato lá na agência, expliquei-lhe a situação, ele sempre foi bastante compreensivo e aberto aos problemas dos funcionários, sempre conduziu a agência com uma grande abertura para que nos sentíssemos todos à vontade. Quando fui à entrevista para o emprego de criativa na agência era muito nova, tinha 21 anos e tinha acabado o meu curso de Publicidade. O Renato foi desde logo bastante simpático, tinha aberto a agência há 2 anos e ainda estava a procurar um lugar de destaque no mercado publicitário, por isso aceitava novos desafios e gostava de se rodear de gente nova com ideias criativas. Ele gostou bastante do meu espírito inovador e da minha total disponibilidade para o trabalho por isso decidiu dar-me uma oportunidade.
Nestes seis anos em que trabalhamos juntos desenvolvemos uma relação de amizade mais do que uma relação chefe/empregada, até porque sou a única que se manteve sempre com ele. Muitos funcionários têm saído e entrado mas eu estive sempre ao lado dele porque acredito nos projectos e nas ideias que ele tem.
A nossa relação de amizade sempre me deixou à vontade para lhe contar os meus problemas. E desta vez precisava da compreensão dele porque o Bruno estava a precisar de mim e da minha atenção e isso iria fazer com que eu perdesse algum tempo de trabalho lá na agência. Disse-lhe que precisava ir visitar o Bruno à clínica e ele concordou comigo de que seria bom por isso dispensou-me pelo resto do dia.
A minha dupla criativa fica completa com a Rita, que trabalha comigo há 5 anos. Ela trata da parte da visualização das campanhas enquanto eu trato da redacção. O facto de partilharmos a nossa rotina diária fez crescer entre nós uma grande empatia, acho que é por isso que as nossas campanhas são sempre as melhores da agência. Pelo menos é com elas que a agência tem ganho alguns prémios internacionais e isso deixa-nos muito contentes e até um pouco vaidosas, devo confessar.
Foi também com a Rita que me tornei vegetariana, tinha sempre muita curiosidade quando a via comer aquelas sandes de ricota e comecei a perguntar-lhe as opções que ela fazia às refeições. Ela decidiu levar-me ao restaurante “Bem-me-quer” que fica ali na Avenida do Cristo-Rei, tem uma vista lindíssima sobre o Tejo e Lisboa. Quando olhei para a ementa fiquei muito baralhada mas a Rita foi-me explicando tudo e foi daqueles casos em que experimentei e gostei. Até hoje procuro seguir uma alimentação mais rica em vegetais, produtos integrais, cereais. Não sigo sempre estas regras, às vezes torna-se impossível encontrar bons locais para comer e outras vezes sou praticamente obrigada a sucumbir à comida portuguesa, sobretudo quando vou almoçar com os meus pais, a minha mãe gosta sempre de fazer comidas mais elaboradas e fica muito aborrecida comigo se faço cara feia e eu também já estou cansada de a ouvir dizer que estou magra, que não me alimento como deve ser… Além disso o meu irmão João adora comer bem por isso nesses dias eu também abro uma excepção e entrego-me àquelas calorias todas. Pelo menos a minha mãe fica toda contente.
A Rita tem acompanhado a minha preocupação com o Bruno e tem-me apoiado bastante quando preciso sair. Mais uma vez é ela que vai ter de segurar as pontas esta tarde quando for visitá-lo à clínica. Temos agora entre mãos uma campanha de automóveis que já está numa fase adiantada por isso sei que não a vou sobrecarregar muito de trabalho.
Ás 15h deixei a agência e peguei no carro em direcção a Sintra onde o Bruno está a fazer o tratamento. Entrei no carro e, por acaso, reparei que tenho o ponteiro da gasolina muito em baixo. Costumo ser sempre distraída com estas coisas, ainda bem que hoje me lembrei de olhar senão ia ficar pendurada no meio do caminho. Vou ter de perder uns minutos ali na bomba da Galp, o que vale é que fica no caminho. Ao parar na bomba aproveitei e comprei uma garrafa de água para ter comigo, esqueci-me da minha lá na agência.
Tenho a sorte de apanhar todos os sinais da Avenida verdes, sim porque quando se apanha um vermelho parece de propósito, nunca mais se consegue apanhar um verde. Ao passar pelo Hospital Veterinário lembrei-me do meu Joli, tenho de lhe ir comprar comida senão logo à noite não me vai largar mas prefiro fazer isso mais logo quando voltar de Sintra.
A estas horas não há trânsito na portagem e atravesso a Ponte sem problemas, finalmente estou no IC19 em direcção a Sintra. Vou cantarolando as músicas da rádio e sem dar por mim já estou à porta da clínica, conduzir tem este efeito de transe em mim. Sempre gostei imenso de conduzir e às vezes até perco o rumo e vou para além do meu destino. Mas desta vez despertei a tempo e estaciono à porta da clínica.
Parece-me um sítio bastante tranquilo, é uma moradia grande com muitas árvores e jardins estupendos. Ninguém diria que se trata duma clínica de desintoxicação, parece mais uma clínica de repouso. Mas na verdade é este ambiente calmo que se pretende. Fico contente do Bruno estar num sítio assim, ele sempre adorou a natureza. Quando éramos miúdos ele ia comigo e com a minha família a Chaves. Os meus pais são duma aldeia lá perto e todos os anos íamos até lá no Verão. Eu levava o Bruno com os meus primos pelos caminhos, andávamos de bicicleta, tomávamos banho no rio. Eram dias estupendos e aquele ar puro deixava-nos com as faces vermelhas e um novo ânimo para voltarmos à escola em Setembro.
É então que vejo o Bruno e acordo das minhas lembranças, está sentado num dos bancos do jardim, calças de ganga e uma camisola vermelha. Como gosto de o ver com aquela cor! Mantém a mesma cara serena e os olhos brilhantes. Quando me vê levanta-se num pulo e corre na minha direcção. Abraça-me forte e brinca com os meus caracóis, como gosto que ele faça isso, quer dizer que não perdeu aquele jeito atrevido.
Reparo que ele está mais magro mas continua com um aspecto bom embora um pouco abatido. Realmente ninguém diria que ele está nesta situação, o seu físico não deixa transparecer quase nada.
- Tinha tantas saudades tuas. Queria tanto ver-te! – Diz-me ele com aquele jeito meigo que só ele tem.
- Eu sei, por isso vim. Também tinha vontade de estar contigo e de te ver. – Respondi-lhe.
- Estás linda e magra como sempre. Ainda não desististe de comer tantas cenouras e alfaces? E deves ter deixado muito trabalho na agência para vires até aqui… – comenta ele sorridente.
- És tão tonto. Sabes bem que não como só cenouras. E não te preocupes com a agência, a Rita trata de tudo. Mas não quero falar de mim, quero falar de ti. Como estás tu aqui? Corre tudo bem?
Ele começou então a contar-me como se processa o tratamento lá na clínica. A dependência física das drogas é tratada recorrendo aos tratamentos de metadona, é quando ele sofre mais, com as ressacas. Diz que sente muito frio, o corpo treme, fica na cama enrolado numa manta até aqueles sintomas desaparecerem.
Não consigo evitar que as lágrimas me caiam pelo rosto ao ouvi-lo relatar aquele sofrimento pelo qual tem de passar. Ele apercebe-se da minha fragilidade e acaricia-me o rosto dizendo sorridente:
- Vá lá não fiques assim, pensar em ti ajuda-me a ultrapassar tudo isto. Eu quero ficar bom depressa para poder estar contigo como antes, nos nossos tempos de adolescentes. Não te vou falar mais desta parte dolorosa.
Fico contente de ver que ele está animado e com muita força de vontade para continuar. Beijei-o com carinho e pedi-lhe então para me contar o que acontece mais. Ele diz que todos os utentes da clínica frequentam também aulas pedagógicas assentes na formação, o que lhes dá um conhecimento aprofundado do problema que os afecta e que os ajuda a compreender melhor o vício. Além disso existem as terapias de grupo, onde podem falar abertamente uns com os outros dos seus medos, vícios e experiências.
O Bruno diz que isso o ajuda muito, saber que há muitas pessoas com os mesmos problemas que ele, e em grupo eles conseguem criar uma força de vontade ainda maior de ultrapassar aquela dependência.
- Estou muito feliz por ver que estás tão animado com este tratamento. Quanto tempo vais ter de ficar aqui já sabes?
- O tempo é sempre incerto, depende de como for reagindo aos tratamentos mas nunca são menos de 2 meses. Mas eu sei que vão passar depressa. Esta semana já me fez muito bem e sinto que estou no caminho certo para ficar bom.
Apareceu então uma enfermeira que veio chamar o Bruno para a hora da reunião. Todos os dias às 17h30 eles se reuniam para falarem em grupo. Estava a chegar a hora de me despedir dele, de o deixar continuar o seu percurso ali, mas estava mais tranquila por ver que ele estava a aceitar tudo aquilo duma forma tão boa.
- Bem parece que vais ter de ir embora.
- Pois, é verdade. Mas eu agora venho-te visitar mais vezes está bem? Tu próprio disseste que gostavas de me ver.
- Claro que sim. Quero-te aqui ao pé de mim sempre que puderes, mas vê lá não te esqueças dos teus trabalhos lá na agência. O Renato é capaz de começar a ficar chateado se faltares muito.
- Não te preocupes, com o Renato eu entendo-me bem.
- Então posso continuar a contar contigo?
- Sempre Bruno. Vou estar sempre ao teu lado.
Abraçámo-nos demoradamente. É sempre tão bom senti-lo junto de mim, o calor dos nossos corpos alimenta a paixão que está a renascer em nós. Ele beijou-me apaixonadamente, brincou com os meus caracóis e depois partiu, olhou para trás e sorriu-me antes de entrar na clínica.
Enquanto regressava ao carro fui acalmando o meu coração. Não podia conduzir naquele estado. Reparei numa pastelaria ali ao lado e resolvi ir até lá, às vezes não consigo resistir à tentação duma bela bola de Berlim e sei que isso me ia trazer de novo à realidade. Sentada naquela esplanada, de frente para a clínica e enquanto comia a minha bela bola de Berlim lembrei-me da campanha dos automóveis, lembrei-me da comida do Joli que tinha de ir comprar, do trânsito à hora de ponta em Lisboa, da fila para a Ponte. Fiz a minha cabeça regressar à rotina, às preocupações, à vida normal.Entrei no carro, liguei o rádio e cantarolei até casa.

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