terça-feira, março 08, 2005

As Últimas Horas

Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Seminário de Escrita Criativa e Interactiva. O objectivo era dar seguimento à história de um colega.
Escolhi a história «Vidas Complicadas» que transcrevo em seguida para ser mais fácil a compreensão da continuação da narrativa.


Tudo começou em 1990, em Lisboa, quando Sérgio, com apenas 15 anos, sofreu o maior desgosto da sua vida: perdeu os seus pais num acidente de viação. Sérgio não queria acreditar no que estava a acontecer, de repente a sua vida desmoronou-se. Sendo menor e filho único coube ao seu avô ficar com a sua custódia. Como se não bastasse ter ficado sem os pais, Sérgio teve de deixar os seus amigos de Lisboa para ir morar com o avô em Bragança.

O seu avô, António Joaquim, de 68 anos, mal sabia o que o esperava quando aceitou tomar conta do seu neto. Sérgio, como já era de esperar, teve grandes dificuldades em esquecer a tragédia que se tinha abatido sobre si e em se adaptar à sua nova vida em Bragança.

Nunca se adaptou totalmente, no entanto, conseguiu fazer novos amigos, alguns até de boas famílias. Durante o seu primeiro ano em Bragança, matriculou-se numa escola perto de casa mas quando fez 16 anos decidiu deixar os estudos. Resolveu ir trabalhar para as obras, decisão essa que não agradou ao seu avô mas que teve um forte motivo: Sérgio queria juntar dinheiro para fugir de casa. Estava farto daquela vida sem graça. A única coisa de interessante que fazia era ir com os amigos a um bordel que havia na cidade. Embora o dinheiro que tivesse não fosse muito, nunca teve dificuldades em lá ir, afinal de contas, sempre aparentou ser mais velho e tinha amigos com posses.

A primeira vez que entrou naquele sítio ficou de boca aberta com todo aquele luxo: paredes e sofás vermelhos, pequenas mesas redondas de madeira, grandiosos lustres, um bar com paredes espelhadas recheado de bebidas e, é claro que as raparigas também não passavam despercebidas com o seu reduzido vestuário.

Naquela noite, a casa estava cheia como de costume. Estava Sérgio sentado num dos sofás quando se dirige a ele uma atraente rapariga, com os seus 25 anos, de cabelos louros e olhos verdes, chamada Shirley. Começaram a conversar até que a rapariga o convidou para subir. Escusado será dizer o que aconteceu num dos quartos do andar de cima. O que é certo é que, com o pouco dinheiro que ganhava, Sérgio lá conseguia ir, de vez em quando, encontrar-se com Shirley mas ela nunca conseguiu tê-lo por completo.

Shirley, ou melhor, Ruth Rita, com apenas 21 anos, decidiu levar aquela vida pois estava farta de arranjar unhas a clientes mal dispostas. Ser prostituta de luxo sempre dá mais dinheiro do que ser manicura. Como não conseguiu concretizar o sonho da sua vida, ser cantora, e por estar cansada de andar sempre a caminho de castings apenas para conseguir lugares de assistente em programas de televisão, Ruth decidiu-se pela profissão mais antiga do mundo.

O tempo foi passando, até que chegou o tão desejado dia para Sérgio: o dia em que fazia 18 anos. Farto da vida que levava, e cada vez mais certo do que queria, decidiu ir para Lisboa. Os primeiros tempos não foram nada fáceis. A única maneira que arranjou para ganhar dinheiro foi pondo um daqueles anúncios no jornal oferecendo a sua companhia. E não é que ganhou uma boa quantia! Grande parte do que juntava investia em fundos e na Bolsa. Era mais o que perdia do que aquele que ganhava.

Estes anos que passou nesta vida serviram para acentuar mais as dúvidas que tinha em relação à sua sexualidade. Aos 30 anos conseguiu assumir-se como homossexual. E foi nessa altura que viu em Carlos Almeida, cabeleireiro no Bairro Alto, a hipótese de ter uma vida melhor, mais digna.

Carlos, homossexual desde cedo, agora reformado e com 65 anos, descobriu, aos 25 anos, a aptidão para ser cabeleireiro. Os poucos cabelos que tinha estavam minuciosamente penteados com litros de brilhantina, sempre de lenço ao pescoço e engomado dos pés à cabeça, finalizava a sua toillete com uma bengala. Chegou a ganhar inúmeros prémios nacionais e internacionais. Quem é que não conhecia o famoso Carlos Champs Elysées?

Carlos e Sérgio acabaram por se envolver e por viverem juntos. O facto de, em Portugal, não ser permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não os impediu de viverem um amor tórrido. Após cinco anos de vida em comum, aperceberam-se que, para serem totalmente felizes, apenas precisavam de um filho. Como é que isso seria possível?

Não sendo permitida a adopção de crianças por casais homossexuais, chegaram à conclusão que a única solução seria encontrarem um mulher que estivesse disposta a servir de barriga de aluguer, o que não iria ser nada fácil. Quem é que estaria disposto a passar por uma situação destas?

No entanto, há gente para tudo. Um dia, por acaso, no cabeleireiro, ouviram um boato no qual constava que uma rapariga, chamada Isabel, neta da D. Felismina, que trabalhava num talho lá para os lados da Graça, tinha dado o filho bebé a um casal impossibilitado de ter filhos. Dizia uma das clientes:
− Este país é só desgraça... Agora até já dão os filhos aos outros!
− Onde é que ouviu isso? – Dizia outra cliente.
− No outro dia, estava a conversar com a D. Odete quando ela me disse que a Isabel, a neta da D. Felismina, tinha tido um bebé mas, como era solteira e tinha engravidado sem querer, deu-o a um casal de estrangeiros.

Carlos, quando ouviu esta conversa, pensou que a oportunidade dele lhe tinha batido à porta. Conversou com Sérgio e resolveram ir à procura da rapariga.Foram então à Graça. Andaram às voltas para estacionar o carro e lá conseguiram arranjar lugar. Como não sabiam o nome do talho onde a rapariga trabalhava tiveram de procurar. Foram perguntando às pessoas se conheciam alguma Isabel que trabalhasse num talho, até que uma senhora lhes disse que ela trabalhava no Talho do Zé Manel que ficava no Beco da Graça.

Carlos e Sérgio, disfarçadamente, espreitaram para o talho à procura de Isabel. Viram que só lá estava uma rapariga, logo, só podia ser ela. Não puderam deixar de reparar na boa apresentação que o talho tinha, o sítio “transpirava” limpeza: as paredes, tão brancas que até brilhavam, serviam de expositor aos vários utensílios de corte (facas, cutelos), a vitrine do balcão de atendimento tinha toda a variedade de carnes e enchidos.

Acharam que seria melhor esperarem pela hora de encerramento, para falarem, calmamente, com a rapariga. O relógio de Sérgio marcava 20 horas em ponto quando, de repente, a viram sair. Discretamente, para não a assustarem, dirigiram-se a Isabel.

Carlos contou-lhe o que tinha ouvido sobre ela e propôs-lhe que engravidasse em troca de uma boa quantia de dinheiro. Isabel ficou bastante assustada pois não fazia ideia que se soubesse do que se tinha passado com ela. Como o mundo é pequeno. Apesar de já ter tido um filho e de aparentar ter mais idade, ela tinha apenas 17 anos.

Mal Carlos acabou de falar, os ternos olhos azuis da rapariga encheram-se de lágrimas. Isabel não podia esquecer que era o único sustento da casa. Nunca soubera quem foi seu pai, sua mãe ficara tetraplégica devido a uma paralisia cerebral e o dinheiro que ganhava no talho mal dava para pagar as contas. Embora tivesse ficado muito incomodada com a situação ficou de telefonar a Carlos para lhe dar uma resposta.

Passado algum tempo, quando Carlos menos esperava, toca-lhe o telemóvel. Era Isabel para dizer que aceitava a sua proposta. Carlos convidou-a para morar em sua casa. Deste modo, poderia ter mais conforto e uma gravidez mais descansada.

Embora fosse mais velho do que Sérgio, Carlos quis ser o doador de esperma.Ao fim de cinco meses de convivência, Sérgio e Isabel começaram a sentir uma certa cumplicidade. É de lembrar que, apesar de homossexual, Sérgio já tinha tido outras mulheres. Daí até se envolverem amorosamente foi um passo. Pois é, os dois apaixonaram-se.

Resolveram esperar que o bebé nascesse para contarem tudo a Carlos. E assim foi, este quando soube sofreu um tremendo choque. Por fim, teve de aceitar a situação. O que ele não esperava é que Sérgio e Isabel quisessem ficar com o bebé. Carlos jamais poderia tolerar que isso acontecesse, afinal de contas, ele era o pai da criança.

Sem outra solução, Sérgio e Isabel fugiram com o bebé, o pequeno Hugo, para o México. Lá, começaram, juntos, uma nova vida.

Carlos, de tão desgostoso que ficou com a situação, não aguentou e decidiu pôr termo à vida.



As Últimas Horas

Foi numa noite de Inverno que deu corpo aos seus planos. Durante a tarde tinha ido ao seu médico de família a quem contou o seu estado depressivo causado pela situação difícil que vivia.

O Doutor Pedro receitou-lhe então alguns anti-depressivos, quatro no total, e preocupou-se em explicar a Carlos a complexidade de cada um, alertando-o para o facto de serem fortes e de não poderem ser tomados todos em simultâneo.

Carlos deveria optar por aquele que via como mais adequado à situação. Assim, quando tivesse dificuldades em adormecer deveria toma o Dormon*, para casos de grande ansiedade o Lecton*, os outros dois deveriam ser tomados regularmente duas vezes ao dia de forma a ajudar a combater o estado depressivo que vivia.

Quando saiu do consultório Carlos dirigiu-se de imediato à Farmácia mais próxima de sua casa, ficava na rua transversal à sua, e comprou de uma só vez as quatro embalagens.

A Dona Júlia da Farmácia, que era cliente habitual do salão de cabeleireiro de Carlos, ficou intrigada com aquela receita médica e resolveu perguntar:
- Carlos está tudo bem consigo? O Doutor Pedro receita-lhe aqui um conjunto de medicamentos bastante forte…
- Não se preocupe – respondeu Carlos no seu tom cordial de sempre - sabe que ando desanimado com tudo o que tem acontecido por isso pedi ao Doutor que me receitasse algo parta me acalmar.
- Tudo bem então, mas tome cuidado, sabe que na sua idade qualquer abuso pode ser mais problemático. Ainda por cima morando sozinho. Não hesite em ligar para cá se precisar de alguma coisa.

Carlos sorriu enternecido com a preocupação da Dona Júlia. Desde que se tornara sua cliente, há cerca de 15 anos, tinham criado alguns laços de amizade. Sendo ela dona da Farmácia do bairro, acompanhou o relacionamento de Carlos e Sérgio e estava a par da situação que Carlos vivia actualmente com a fuga do casal levando o pequeno Hugo para o México.

Ao chegar a casa, já ao fim da tarde, Carlos ligou o aquecedor, sentou-se no sofá com a manta verde sobre as pernas e ligou a televisão. Na sua cabeça andavam mil e um pensamentos. Será que deveria fazer mesmo aquilo? Afinal que sentido tinha a sua vida agora? Tinha perdido o seu filho, não sabia sequer para onde tinham ido com ele. Na sua idade já pouco podia fazer, o cabeleireiro estava bem entregue e o testamento estava feito deixando tudo a Hugo quando este tivesse idade para assumir os negócios.

Pegou no saco da Farmácia e começou a ler os folhetos informativos de cada medicamento que tinha comprado. O Doutor Pedro tinha sido bastante cuidadoso na sua explicação e a Dona Júlia também se tinha mostrado preocupada. Deveriam ser, de facto, medicamentos com os quais deveria ter cuidado e atenção redobrada.

O seu estômago começava a reclamar alguma comida, desde o almoço que não petiscava nada. Talvez até fosse melhor, talvez isso acelerasse o processo e o tornasse menos doloroso.

Levantou-se e foi até à casa de banho, a mão direita apoiava-se na sua bengala e na mão esquerda agarrava com força o saco da Farmácia e uma moldura de encontro ao peito.

Olhou-se ao espelho e reviveu quase por completo a sua vida. Lembrou-se da sua juventude, dos prémios que ganhou enquanto cabeleireiro e das pessoas que conheceu nessa profissão. O orgulho que sentiu quando abriu o seu próprio salão no Bairro Alto e a festa de inauguração com tanta gente conhecida. Recordou Sérgio e o seu jeito intempestivo, os anos de amor que viveram juntos quando pensava ter encontrado finalmente a felicidade. A chegada de Isabel, a gravidez, o filho Hugo que apenas conhecia em bebé e a vontade que tinha de o poder ver crescer. A dor que sentiu no dia em que Sérgio e Isabel o confrontaram com a verdade e lhe tiraram o chão quando fugiram sem deixar sequer um endereço.

Com mais de 70 anos Carlos não via razões para continuar a viver. Não tinha alegrias, todas lhe tinham sido roubadas. Nem o salão o conseguia animar, havia já nove dias que não aparecia, todos os dias o gerente lhe telefonava a perguntar se estava tudo bem e ele apenas dizia que não tinha cabeça para trabalhar.

Agora via-se ali, em frente ao espelho, sentia o peso da idade, a dor no coração pelo abandono de Sérgio, o sofrimento pela ausência do pequeno Hugo. Estava decidido, ia ingerir o máximo de comprimidos e esperar a morte. Com ela esperava que viesse a paz e a tranquilidade que não conseguia ter actualmente.

Todos os seus gestos se tornaram lentos, quase parecia querer desistir da sua ideia. Dirigiu-se à cozinha para buscar uma garrafa de água de litro e meio, regressou à casa de banho e sentou-se na sanita. Olhou para o saco dos medicamentos e olhou uma última vez para o espelho. «Já não tens nada a fazer. Perdeste tudo o que mais amavas. O melhor é mesmo partir.» disse a si mesmo.

Abriu uma por uma as embalagens de medicamentos. Ingeriu um a um os comprimidos de todas elas com uma melancolia assustadora e demasiado masoquista para o homem que tinha sido. Não se reconhecia naqueles gestos mas, no entanto, nunca pensou em desistir. Aos poucos ia dando uns goles na água para ajudar a ingestão dos comprimidos.

Lentamente foi sentindo uma dor aguda no peito. A intoxicação por anti-depressivos é das mais eficazes causando uma paragem cardíaca de difícil recuperação. Teve ânsias de vómitos, mas não chegou a ter consciência do que aconteceu porque perdeu os sentidos. Caiu no chão da sua casa de banho e ali ficou, inanimado, o coração começou a parar bem devagar até que deu o último batimento.

Carlos sabia, ao tomar esta decisão, que demoraria algum tempo até o encontrarem, quem sabe até dias. Não tinha familiares, Sérgio e Isabel tinham fugido e os únicos amigos trabalhavam no seu salão. Talvez quando não atendesse o telefone suspeitassem de algo.

E assim foi, no dia seguinte pela manhã o gerente do salão ligou para a casa de Carlos, ninguém atendeu. Ligou para o telemóvel, ninguém atendeu. Esperou uma hora e voltou a ligar para casa, ninguém atendeu. Ligou para o telemóvel, ninguém atendeu. Após algumas insistências achou melhor ir ver o que se passava.

Dirigiu-se a casa de Carlos que ficava bem perto do salão, ele sempre tinha adorado o seu Bairro Alto. Tocou insistentemente à campainha, mas ninguém lhe abriu a porta. Decidiu perguntar pela vizinhança se sabiam de alguma coisa mas ninguém via Carlos desde o dia anterior. Chamou então os bombeiros com receio que algo tivesse acontecido. Afinal Carlos já era um homem de idade e morando sozinho podia acontecer algo sem que ninguém desse conta.

Quando os bombeiros arrombaram a porta o cheiro a morte já estava no ar. Foram encontrar Carlos deitado no chão frio da sua casa de banho, morto, com a mão esquerda fechada com força agarrando uma moldura. Quando conseguiram soltar a mão e ver a moldura todos perceberam o sofrimento daquele homem. Era uma fotografia de Carlos e Sérgio sorrindo ao lado do berço do pequeno Hugo.


* O nome dos medicamentos foi inventado por mim pois não queria fazer referência a medicamentos reais.

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